A Medicina precisa de ajuda para calar os silêncios e a arte tem muita ajuda para dar
Diário | A medicina, Expresso 3 de junho 2019
POR CHRISTIANA MARTINS
com base na entrevista a Rita Charon (Univ. Columbia, Dept. of Medical Humanities and Ethics) e a Maria de Jesus Cabral (Univ. Lisboa, Projecto em Humanidades Médicas)
A Medicina está a mudar. Silenciosa e discretamente. Insatisfeitos, alguns médicos percebem que a técnica não responde a tudo e que é preciso criar empatia. Ver e escutar, mais do que olhar e ouvir. Rita Charon, médica norte-americana precursora da Medicina Narrativa, já fez este percurso, plantou sementes em Portugal e regressa agora a Lisboa para receber um doutoramento Honoris Causa.
Descobrir na aridez das consultas médicas o espaço necessário para se construir uma relação humana, olhando nos olhos do doente e vendo o que está para lá dos mecanismos biológicos. No silêncio do medo do doente, pode estar um espaço aberto complementando a técnica com a possibilidade do sentimento. Mas onde poderão estes profissionais encontrar a riqueza de linguagem necessária para dar o salto em direção ao outro?
Rita Charon, médica norte-americana com especialização em Literatura, inquieta com a distância que a separava dos doentes, ousou contruir uma ponde humana com material literário.
Esta terça-feira, a professora da Columbia University em Nova Iorque, profere uma conferência na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento com o instigante título “Para ver o sofrimento: os nossos olhos [virados] para a vida dos outros”. Na quinta-feira, Charon recebe o doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Lisboa. Por escrito, a médica conversou com o Expresso sobre a crescente tendência da Humanização da Medicina.
“Viver com um corpo ou simplesmente ser um cirpo é uma natureza que implica finitude. O corpo é mortal e toda a relação que liga médicos e doentes é construída à sombra da morte. Mesmo que fôssemos imortais, esta condição não nos protegeria da dor ou do sofrimento”, começa por responder Rita Charon, quando questionada sobre o espaço que o corpo do doente ocupa na relação com o médico que o trata. Explica que temos de prevenir os ferimentos e que temos urgência em o fazer, daí a necessidade de procurarmos pela Medicina. Criado o encontro entre o médico e o doente, a base desta relação será sempre o corpo, o chão sobre o qual se erguerá esta específica relação. “Sem corpo não há Medicina, não há médicos nem doentes”, sintetiza Charon, determinando o cenário deste encontro.
Um corpo que pode ter de ser ferido por quem era suposto tratá-lo. E o medo de ferir ou causar dor está na origem, segundo Rita Charon, da crise dos opiáceos, especialmente grave nos Estados Unidos, país de origem desta médica.
A especialista aborda então um dilema com que os médicos têm de se confrontar: tratar sem dor pode implicar a dependência dos doentes dos opiáceos. E é esse o terreno determinante deste diálogo, segundo a especialista: “Os médicos têm de aprender que o sofrimento dos doentes faz parte do trabalho deles. E que o resultado de testemunhar o sofrimento dos outros é diferente de passar pelo sofrimento. Nós podemos ajudar os médicos a perceberem a diferença e os benefícios que quer os próprios profissionais quer os doentes podem ter quando os médicos estão emocionalmente abertos a reconhecer a tristeza e o sofrimento enfrentado pelos doentes.”
“Os médicos temem uma excessiva aproximação aos doentes, mas eu creio que este receio é exagerado.” Este é o fio condutor do pensamento de Charon porque, explica, é nesta lacuna de proximidade que a Medicina Narrativa pode disponibilizar ferramentas aos profissionais da saúde. Porque, como diz Charon, “o corpo fala para lá do que a pessoa diz”, porque é através da linguagem corporal que cada um se expressa. “De uma forma misteriosa, o corpo do doente fala com o médico para além da conversação que ambos estabelecem”. Mas esta é toda uma “dimensão de mistério”, que, assume a médica, ainda lhe escapa. Certo é que o foco do médico deve ser o doente e não da doença. “A doença não é algo separável da pessoa”, completa Charon.
Medicina Narrativa em Português
“A Medicina é uma ciência humana”, afirma Maria de Jesus Cabral, investigadora auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e com um pós-doutoramento sobre a relação entre teatro e medicina. A professora portuguesa explica que “a Medicina Narrativa nasceu dentro da classe médica porque esta sentiu que os modelos convencionais não bastavam e, em 1996, Rita Charon cria o curso de Medicina Narrativa na Universidade de Columbia e vai buscar a literatura porque percebe que esta a ajudava a tocar o sensível”.
Os trabalhos de Rita Charon, explica, “dialogam e interagem com várias ciências humanas e sociais – filosofia, antropologia, sociologia, psicologia, artes, para lá dos estudos literários que são a pedra de toque da Medicina Narrativa, sempre em busca de uma abordagem mais abrangente e integradora da pessoa doente, encarando-a na sua complexidade multifacetada, na sua subjetividade inalienável”.
Charon, continua Maria de Jesus Cabral, “abriu caminho para explorar a relação entre linguagem não verbal e para verbal, na dimensão narrativa da consulta, e os aspetos como a importância do uso de uma linguagem clara e compreensiva, de uma atitude acolhedora, até à maneira de vestir, de se apresentar, de interagir”.
O movimento proliferou e chegou a Portugal. Maria de Jesus Cabral diz mesmo que nos últimos cinco anos, 70 a 80% das faculdades de Medicina do mundo ocidental incorporaram disciplinas de humanidades nos seus currículos. “É uma tendência crescente”, garante.
Medicina Narrativa no IPO de Lisboa
Entre junho de 2015 e outubro de 2016, Maria de Jesus Cabral passou por o que diz ter sido “a experiência intelectual e humana mais instigante de 25 anos de carreira” pelas quais já havia passado. No Serviço de transplante de Progenitores Hematopoiéticos do IPO de Lisboa, liderou um projeto de investigação no âmbito das Humanidades Médicas, que recebeu o título “Do texto ao corpo: interfaces teatro e medicina”. A pesquisa consistiu na observação de consultas e entrevistas orais a médicos e doentes oncológicos com diagnóstico de leucemia, entre os 18 e os 65 anos. Em causa apenas o objetivo de humanizar os cuidados de saúde.
Observadora, Maria de Jesus Cabral percebeu a importância da linguagem não verbal – o gesto, a voz, o espaço, os silêncios, as hesitações, a expressão facial – e conclui que era impossível fechar toda a riqueza da comunicação doente/médico numa grelha pré-desenhada. E percebeu ainda que há momentos especialmente delicados nesta relação. Como quando o médico toca o doente. A investigadora sublinha que “de um modo geral, o toque é invasivo em Medicina, por vezes, mesmo doloroso, no exame clínico” e, citando Rita Charon, recorda que “tal como o toque, a escuta favorece a vinculação e pode tornar-se diferencial em termos de diagnóstico.”
Participante do projeto SHARE (Saúde e Humanidades Atuando em Rede, que inclui para além da Faculdade de Letras da Universiade de Lisboa, a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia/ISCTE, entre outros parceiros), financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, tem como um dos objetivos fixados, a criação no prazo de dois anos e meio de um curso de doutoramento interuniversitário e internacional em “Humanidades Médicas”, envolvendo uma equipa da medicina e da enfermagem, mas passando ainda pela bioética, filosofia, sociologia, artes visuais, psicologia e fisioterapia.
Maria de Jesus Cabral é também co-coordenadora científica da Unidade Curricular em Medicina Narrativa a funcionar desde 2013 na Faculdade de Letras, onde leciona a disciplina de “Narrativa e Comunicação”.
Também a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa incorporou este ano na licenciatura uma disciplina opcional com o título “Humanidades Médicas”, frequentada por estudantes do segundo ao quinto ano que pretende, pretende dar aos futuros médicos formação sobre “a relevância das narrativas e da comunicação para o encontro clínico, cruzando saberes e procurando contribuir para práticas eticamente refletidas”, de forma a “desenvolver estratégias comunicativas e de autoconsciência reflexiva como instrumentos capacitadores da prática profissional de futuros médicos”. E, para já, aproveita para deixar um alerta ao Ministério da Saúde e à Ordem dos Médicos: “As consultas de 15 minutos não bastam.”